Em Março de 2021, um voo da Air France proveniente de Paris aterra em Nova Iorque com 243 passageiros a bordo. Três meses mais tarde, um avião com as mesmas características, os mesmos passageiros e a mesma tripulação aproxima-se de Nova Iorque, o seu porto de destino. O fenómeno é inexplicável e gera uma comoção política e científica de grandes proporções. O maior transtorno, no entanto, recai sobre cada um desses passageiros, que terão de enfrentar seu duplo; eles têm DNA idêntico e as mesmas lembranças de experiências vividas até março daquele ano, só que um dos pares viveu três meses a mais que o outro.
Com esta proposta ficcional, o romance A Anomalia do escritor Hervé Le Tellier, vencedor do Prémio Goncourt 2020, apresenta-nos uma nova variação do tema do duplo, um tópico recorrente na literatura universal que remete para a questão existencial de quem sou eu. Em A Anomalia, as personagens reagem com perplexidade ao seu duplo; em muitos casos, com medo ou repugnância. Não é fácil vermo-nos como um duplo, é assustador observarmo-nos de fora, ver não a imagem invertida que o espelho nos dá, mas vermo-nos tal como somos, tal como os outros nos vêem. Lucie, por exemplo, detesta o queixo trémulo que vê na outra Lucie e que revela a sua raiva; André parece mais enrugado do que julga ser; Adriana, por seu lado, tarda a perceber que está diante de si própria; não se reconhece. O duplo confronta-os com uma realidade que nem sempre coincide com a sua auto-percepção. O duplo perturba o processo permanente de realização da identidade pessoal.
Não é por acaso que Sigmund Freud menciona no seu artigo O Sinistro (Das Umheimliche, 1919) a figura do duplo como uma componente importante do sinistro, essa estranheza inquietante que se manifesta no familiar e que ocorre particularmente na literatura fantástica a partir do Romantismo. A visão do doppelgänger, do duplo (termo cunhado pelo escritor alemão Jean Paul Richter no século XVIII) é inquietante, pois surge como um eu-outro que questiona não só a própria identidade, mas também a fronteira com o outro. Onde é que eu acabo e onde é que o outro começa? Eu sou tu. Tu és eu. É demasiado, não podemos ser dois, diz uma das personagens de A Anomalia.
A certeza de que só nós podemos perceber a consciência do eu é quebrada pela realidade do duplo que também é capaz de aceder à nossa interioridade. É perturbador o facto de o duplo ser um espelho indescritível, como diz outra das personagens, alguém que sabe tudo sobre mim e perante o qual não há máscaras possíveis.
A duplicação é também perturbadora neste romance, pois o duplo destrói a convicção de que somos seres únicos e de que é aí que reside o nosso valor. A doble de Joanna, por exemplo, engravidou do namorado durante os três meses que passaram juntos. Por isso, tem de o abandonar em favor do seu duplo e da criança que espera. Como acontece com muitos duplos literários, a coabitação não é possível. Longe de ti (…) terei a oportunidade de reencontrar a pessoa que sou, a pessoa que quero ser, diz Joanna ao seu duplo. Sem singularidade, não pode definir a sua própria identidade.
Em A Anomalia, a semelhança é assustadora, mas a diferença também é desconcertante, aqueles três meses que só os que aterraram em Março viveram. Nesse período, um deles suicidou-se, uma mulher acabou com o namorado, outra tornou-se famosa. Olham para o seu duplo recém-chegado em Junho como quem olha para o passado. Estes últimos olham para a sua réplica mais experiente como uma possibilidade entre muitas outras de se tornarem eles próprios. Apesar do passado comum e do mesmo material genético, os caminhos da vida divergem e cada uma terá de reformular a resposta à pergunta «quem sou eu», procurando a verdadeira essência que a define. Ficção científica ou fantasia, nada melhor do que a literatura e a sua linguagem simbólica para explorar o mistério da identidade e o seu permanente processo de formação.
A Anomalia, Hervé Le Tellier; Tradução: Tânia Ganho. Editorial Presença.
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