As figuras finas, secas e encarquilhadas de Alberto Giacometti parecem sempre a caminho do despojamento de qualquer vestígio de individualidade.
Contudo, relembremos as notas de Jean Genet sobre o trabalho do artista em O Estúdio de Alberto Giacometti. Nelas não se encontra a palavra identidade. Fala-se antes de solidão, de um lugar secreto, de uma singularidade intocável, de algo insubstituível, de uma ferida. Talvez pudesse falar-se também da particularidade de cada ser e de cada coisa, do seu segredo ou da sua essência. Para Genet, Giacometti quis iluminar esse lugar; aproximar-se dele – parece quase tocá-lo! –; reconhecê-lo; restituí-lo nas suas obras, isolando aquilo que estava a ver, purificando a sua visão daquilo que o perturbava, expurgando as aparências, colocando em pausa todas as ligações utilitárias com as coisas, sendo fiel à realidade. Alguns trabalhos do escultor português Rui Chafes, em diálogo com os de Giacometti, parecem querer fazer justiça a essa solidão.
Esse reconhecimento quer dizer que nenhuma coisa, nenhum ser é redutível ou idêntico a nenhum outro e que, ao invés, nas palavras do filósofo Walter Benjamin, tudo é “impenetravelmente semelhante a si mesmo”: significa-se a si próprio. Mas, por isso mesmo, é também um abrir portas à beleza e à possibilidade do amor: as obras de Giacometti parecem ter nascido desse esforço de recorte, à luz do qual, enfim, todas as coisas surgem como belas; à luz da sua solidão, do seu lugar secreto, qualquer um pode ser amado, diz-nos Genet, apesar da sua fealdade ou malvadez.
No fundo, isolar ou recortar é aquilo que se tem de fazer para que algo se revele; para que uma irradiação subitamente nos atinja, como um olhar que se lança a alguém e que se espera ser devolvido, estabelecendo-se um elo mágico entre aquele que vê e aquilo que se está a ver, o qual escapa a qualquer discurso psicologista sobre o Eu, sobre a subjectividade ou sobre a empatia. Coloca-te no meu lugar! Put yourself in my shoes!, ouvimos constantemente. Mas, em rigor, não se trata disso. A pergunta pela identidade de cada um apenas se pode dar numa relação recíproca, numa reverberação, num elo de comunidade que se estabelece e que significa um súbito reconhecimento, uma compreensão, que escapa a qualquer visão utilitária ou concepção comunicativa entre um emissor e um receptor. Trata-se antes da expressão ou da tradução da irradiação de um ser: em alguns casos, a arte, através da linguagem plástica, é a manifestação desse reconhecimento. Poderíamos falar também de uma ideia positiva de apropriação – uma experiência que a esfera do conceito contemporâneo de apropriação cultural deveria levar em conta.
Rui Chafes e Alberto Giacometti. Gris, vide, cris Museu Calouste Gulbenkian, até 25 setembro 2023
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