A mulher mais bela do mundo, a filha de Zeus, a causa da guerra mais famosa da antiguidade; conhecida como Helena de Tróia, não como Helena de Esparta, a sua terra de origem. O próprio nome ilustra uma vida de desenraizamento contínuo.
Todos sabem da sua fuga com o Príncipe Paris, uma viagem impulsionada pelo amor e pelo desejo, mas a Helena recriada pelo dramaturgo e realizador Miguel del Arco e interpretada em diferentes palcos pela actriz Carmen Machi, já sabia do exílio há muito tempo. A sua própria condição de filha de um deus e de um mortal deixa-a na terra de ninguém desde o berço. A que pátria pertence ela? À dos deuses? À dos humanos?
A ação é passada numa favela decadente, rodeando a protagonista com testemunhas anônimas que a escutam com indiferença, sem uma ponta de empatia ou mesmo de curiosidade, reforçando a profunda falta da rainha: ela não tem comunidade para a integrar.
Tal como Helena, muitos de nós vivem em uma ou mais cidades, mas sem fazer parte de nenhuma delas. O crescimento das nossas cidades, a despersonalização dos bairros das grandes capitais e centros turísticos coloca-nos numa situação emocional muito semelhante à desta heroína, gerando um sentimento de estranheza e de não pertença, que quebra a nossa identidade.
Ao mesmo tempo, a protagonista conta-nos como tem atraído inúmeros julgamentos nos locais onde viveu. Ela tem sido um objeto de desejo e uma moeda de troca no jogo de xadrez do poder; considerada um troféu e um tesouro a ser resgatado; usada como um gatilho para uma guerra sangrenta. Todas estas premissas têm algo em comum: a negação da pessoa, da mulher que sente e experimenta. Outra condição comum do nosso tempo.
A negação do outro e torná-los o repositório dos nossos julgamentos, favoráveis ou condenatórios, acelera também o processo de enfraquecimento das nossas comunidades, o que por sua vez nos deixa indefesos, não só aqueles que julgamos, mas também aqueles que condenamos.
Helena perde as suas raízes. As nossas cidades e os seus habitantes perdem as suas raízes. As nossas comunidades estão a ficar cada vez mais fracas sem estas âncoras necessárias, sem os laços que unem vizinhos. Se a comunidade for quebrada, mesmo sem emigrar, tornamo-nos estranhos, despersonalizados, sozinhos.
O veredicto a que a protagonista nos interpela, deixando-nos no lugar desconfortável do juiz, não é sobre a sua culpa nos acontecimentos de que é acusada, mas sobre o nosso lugar na construção da comunidade e o papel que escolhemos desempenhar nela.
Juicio a una zorra, Miguel del Arco, Edições Antígona (España)
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