A correria começa muito antes que os espectadores cheguem e se acomodem. Eles já estão a dançar e a jogar à bola no palco, e assim hão-de continuar. O destino daquelas crianças e jovens é fugir e sobreviver, e o nosso é ouvir as suas histórias e desejar que os seus passados não sejam condenações. Uma das interrogações possíveis: a partir de que momento se define como margem o lugar do qual se torna sempre cada vez mais difícil sair?
A parceria Vitor Hugo Pontes e Joana Craveiro baseou esta pesquisa na obra “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, por justaposição com uma investigação documental de jovens institucionalizados na Casa Pia e no Instituto Profissional do Terço, que partilharam testemunhos, agora encarnados na vasta equipa que interpreta a “Margem”. A quase hora e meia de espectáculo leva-nos a escutar cada um dos jovens singularmente, mas também a força (e violência) do colectivo unido na e pela transgressão, através de uma fraternidade que os defende do exterior.
O cenário resume-se a uma enorme palmeira e a colchões espalhados pelo espaço. Estes são os amortecedores para todos os temas que vão emergindo: perdas, desamparo, sonhos, amor, sexualidade, criminalidade, solidão e coragem. São também o elemento que reforça o despojamento de tudo o que é acessório, mas também de tudo o que signifique o cuidado e o conforto, que eles desconhecem.
Durante anos, trabalhei numa comunidade terapêutica de jovens dentro do sistema legal de promoção e proteção. Todos contavam (ou omitiam) histórias de abandono, disrupção, violência e, sobretudo, de sobrevivência. O custo mais evidente traduzia-se sempre na perda de inocência. Era comum ouvir narrações que não deveriam pertencer àquela voz, àquele corpo. Um corpo isolado num sistema social e judicial que pune os mais vulneráveis e os remove do seu contexto, em vez de neutralizar, reeducar, prevenir, pelo menos com mais eficácia, os efeitos nefastos desse mesmo sistema. Uma reflexão para muitos intolerável por ser tão difícil de aceitar como realidade perene: quantos dos jovens encarnados naquele palco virão a ser adultos vazios no futuro?
As vozes dos testemunhos e a leitura de partes da obra entrecruzam-se, tornando-se, como tal, um uníssono feito de realidade e de ficção, que se consubstancia de forma intemporal. São jovens eternos com cicatrizes de feridas perpetradas por adultos vazios. Saberão eles que estão à margem? Saberemos nós, espectadores, resgatar o foco da discussão centrada em infâncias perdidas para sempre, representadas por estes dançarinos exímios do abismo? Certamente terem focos de luz sobre eles, poderem viver o palco com a corporalidade de cada um e com as histórias de todos, foi um convite a viver a margem em conjunto. A conhecer a sua dureza, poeticamente.
Este artigo foi escrito a partir da peça de dança “Margem”, baseada na sua vez no romance de Jorge Amado, “Capitães de Areia”. Rita Carvalho trabalhou por anos com crianças institucionalizadas.
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