Edición Europa

2022 número 1

Literatura

Terrinhas

GOSTAR DAS NOSSAS BATATAS

Uma avó trazida da Terra, só uma vez. A protagonista vê a avó no banho: os cabelos encarrapitados finalmente soltos, a água escorrendo castanha; as mãos crespas acastanhadas nas dobras, Cláudia esfrega-as, põe creme e o creme não entra na pele da avó. A avó é praticamente uma batata, dessas que se negam a ficar nuas, a sair da terra. A estranheza que causa mostra-nos uma ruptura geracional, uma avó do meio rural, pais que descobrem a cidade, e ela, uma menina do betão: sempre limpa, usando palavras só do dicionário, vendo as maravilhas de uma máquina de tirar borboto. 

O livro começa com as batatas, pretexto para explicar as dinâmicas familiares, ficamos íntimos dos três personagens e depois perdemos dois. Morrendo os pais, Claudia tem que se desenraizar da própria casa, dos vocábulos compartilhados, das tradições do cotidiano para sobreviver psiquicamente. Todo o luto implica um puxão, um ser rasgado para fora do próprio lugar, um perceber que um universo que se habitava deixou de existir mais além da memória. 

Quando recupera o equilíbrio chega uma carta que a faz herdeira de terrenos na Terrinha. Retorna a Arrô, esse lugar de origem desvalorizado que se apresenta agora como um enigma: onde estão afinal as suas terras? Que demarcação territorial é esta que não está inscrita em nenhum lado? Pergunte aos antigos que sabem, menina: as suas terras confrontam-se com as de quem? Não é sempre assim a origem? Um mistério? E esse mistério não se desvenda no confronto da nossa história com a de quem nos rodeia? 

Lacan falava de Extímo, palavra que o corrector ortográfico insiste em que eu substitua por estimo. Num sentido, tem razão: há que estimar o extímo, fazemo-nos assim, nessa fita de moebius onde nada nunca é só externo ou só interno. Aquilo que nos é mais íntimo é externo, está no campo do Outro. Insiste a protagonista em dizer a sua história externa, esquecida, ultrapassada, mas o esquecido retorna, insiste. A origem é uma flor de batata, mostra-nos este romance, um fim e um início, um exterior que nos funda.

Crescer é desenraizar-se, despegar-se da família de origem, dos lugares de partida, das identidades mais rígidas a que o olhar do Outro moldou a infância. Que fazer então quando algo dessa origem aparece como proibido, como rejeitado, como silenciado? Crescer implica então, também, o contrário: olhar para o passado, pensar as origens, reconstruir a narrativa familiar e dar-lhe um contexto. Gostar das nossas batatas. E no fim de contas, não será sempre assim?

 

Raquel escreve à partir do livro “Terrinhas” (Gradiva, 2022), o primeiro romance da jornalista Catarina Gomes. Disponível em livrarias portuguesas. 


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