A vida cotidiana das últimas semanas, transcorreram sob o influxo de solicitações diversas, que acabam por adequar o nosso diário viver a uma ritualidade que nos resulta, ao mesmo tempo, conhecida e estranha.
A vivacidade dos rituais que adicionamos por estes dias, evoca a ideia nietzscheana do “eterno retorno a si mesmo”. Apesar das aparências, e de Nietzsche, não há tal “retorno”, como nos ensina a experiencia diária que nos permite constatar novidade e mudança no nosso entorno; e se como isto não bastasse, a convincente afirmação nerudiana está aí para nos relembrar que: “nós, aqueles de antes, já não somos os mesmos”.
Faça chuva ou faça sol, os rituais persistem e evolucionam, adequando-se às necessidades dos novos tempos.
A ritualidade (“Observância das formalidades prescritas para fazer uma coisa”, segundo a RAE), contribui, de muitas formas, a facilitar as relações entre os indivíduos na comunidade e com a natureza. Foi assim desde tempos imemoráveis; de facto, ritos, liturgias e cerimônias, foram e continuam a ser elementos estruturais da vida humana, tanto no comum dia a dia, como na insondável complexidade intemporal do imaginário individual e social.
Entre as numerosas funções reguladoras assumidas pela ritualidade, há uma, que podemos considerar a tarefa das tarefas:
A de capturar o tempo, ou pelo menos modular o seu transcurso, temperar as suas oscilações e tornar imprevisível o seu ritmo. É aí, o que oculta a policromia dos rituais, o que se ouve, fracamente, sub a sua polifonia, o que se vislumbra, apenas, atrás da sua cegante pirotecnia.
Na realidade os ritos falam do tempo, ou melhor, de nós e do tempo. Vamos assumindo, bem ou mal…, os ritos de encerramento e/ou apertura de um ciclo anual.
Que coisa mais rotineira e mais estranha que o tempo!
“O que é o tempo? – questiona-se San Agustinho – Se ninguém o pergunta, sei; se o perguntam e quero explicá-lo, já não sei”. (1)
A evidência dubitativa” de São Agustín, inaugura uma fecunda reflexão para a qual o tempo parece indefinível, inapreensível, como se só existisse na sua fuga, como se só aparecesse com a condição de desaparecer sempre, e mais escuro no seu aspecto conceitual, como claro na experiencia. “É testemunha e mistério: só se revela escorrendo-se; só se entrega na sua perda; solo se nos impõe no movimento propriamente pelo que escapa. Embora todos o conhecemos ou reconhecemos, ninguém o vê cara a cara” (2).
“O que lhe devemos ao passado?”
Um milênio mais tarde, Pascal dirá que o tempo forma parte das coisas cuja definição satisfatória é “impossível e inútil”: “Quem poderá defini-lo? E porque intentá-lo, já que todos concebem o que queremos dizer ao falar, sem designá-lo mais?” (3)
Para a nossa consciência, o tempo é inicialmente sucessão do passado, presente, porvir. Ora, o passado não está, pois já não é. Também não o porvir, porque ainda não é. Em relação ao presente: ou é dividido em passado e porvir, que é o que são, ou é “um ponto de tempo” sem nenhuma “vastidão de duração” e por conseguinte, “deixa de ser tempo.”(4)
Montaigne á tinha chamado a atenção sobre isto dizendo: “…em relação a estes vocábulos: presente, instante, agora”, com os que aparentemente fundamentamos e asseveramos principalmente a inteligência do tempo, ao encontrar [o tempo] a razão o destrói de imediato: porque o esconde sem demora e o parta do futuro e passado, como si quisesse vê-lo sempre dividido em dos. (5)
Deve dizer-se que a reflexão sobre o tempo não tem cessado, conhecendo uma extensão e profundidade inauditas, involucrados todos os domínios do saber.
“O tempo é o presente. O passado não é, porque não está mais, o porvir não é, porque ainda não está: só está o presente, único tempo real.”(6) trata-se do nosso presente, no qual se articulam tempo e espaço, os referentes sine qua non da existência humana.
A realidade soberana do presente não nos desvincula do passado, obriga-nos a procurar nele muitas das chaves o “aqui e agora”. Presente real que também nos obriga a considerar o nosso porvir, não como um destino predeterminado, senão como uma realidade emergente do presente em que habitamos.
O que lhe devemos o passado? GRATIDÃO e não nostalgia, diz-nos Spinoza; e ao porvir o qe nos pode vincular? Spinoza responde: a CONFIANZA e não a esperança. (7)
(1) San Agustín. Confesione.
(2) Andrés Comte-Sponville. O que é o tempo? Ed. Andrés Bello, Buenos Aires, Santiago de Chile.P.19
(3) Blaise Pascal. Pensées.
(4) Ibidem
(5) Montaigne Essais. Apologie de Raymond Sebond.
(6) A.Comte-Sponville. Ibidem.cmxm
(7) Baruch Spinoza. Ética.